quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

O fundo do espírito é delírio



A questão que Hume tratará é a seguinte: como o espírito devém uma natureza humana?

É verdade que a afecção passional e social é somente uma parte da natureza
humana. Há outra parte, o entendimento, a associação de idéias. Mas é por convenção que se fala assim, pois o verdadeiro sentido do entendimento, nos diz Hume, é justamente tornar sociável uma paixão, tornar social um interesse.


O entendimento reflete o interesse. Se podemos considerá-lo à parte, isto é, como parte separada, fazemo-lo à maneira do físico que decompõe um movimento, mas reconhecendo que ele é indivisível,
não composto.


Não esqueceremos, portanto, que dois pontos de vista coexistem em
Hume: de uma certa maneira, a ser ainda tornada precisa, a paixão e o entendimento apresentam-se como duas partes distintas; porém, em si, o entendimento é tão-somente o movimento da paixão que devém social.


Ora veremos o entendimento e a paixão formardois problemas separados, ora veremos que aquele se subordina a esta.


Eis aí porque o entendimento, mesmo estudado separadamente, deve antes de tudo fazer-nos compreender melhor o sentido em geral da questão precedente.

Hume afirma constantemente a identidade do espírito, da imaginação e da idéia.


O espírito não é natureza, não tem natureza. Ele é idêntico à idéia no espírito.


A idéia é o dado tal como é ele dado, é a experiência. O espírito é dado. É uma coleção de idéias, nem mesmo um sistema.


E poder-se-ia exprimir assim a questão precedente: como uma coleção devém um sistema?


A coleção de idéias denomina-se imaginação, uma vez que
esta designa não uma faculdade mas um conjunto, o conjunto das coisas, no mais vago sentido da palavra, que são o que parecem: coleção sem álbum, peça sem teatro ou fluxo de percepções. “A comparação com o teatro não nos deve enganar...


Não temos o mais remoto conhecimento do lugar em que se representam essas cenas, nem dos materiais de que ele seria constituído”. O lugar não é diferente daquilo que nele se passa; a representação não está em um sujeito.


Precisamente, a questão pode ainda ser assim formulada: como o espírito devém um sujeito?


Como a imaginação devém uma faculdade?

Sem dúvida, Hume constantemente repete que a idéia está na imaginação. Mas,
aqui, a preposição não marca a inerência a um sujeito qualquer; ao contrário, ela é metaforicamente empregada para excluir do espírito como tal uma atividade distinta, a do movimento da idéia, para assegurar, assim, a identidade do espírito e da idéia no espírito.

A preposição significa que a imaginação não é um fator, um agente, uma determinação (determinante); é um lugar, que é preciso localizar, isto é, fixar, é um determinável.


Nada se faz pela imaginação, tudo se faz na imaginação. Ela nem mesmo é uma faculdade de formar idéias: a produção da idéia pela imaginação é tão-só uma reprodução da impressão na imaginação. Ela tem certamente sua atividade; mas essa própria atividade carece de constância e uniformidade, é fantasista e delirante, é o movimento de idéias, o conjunto de suas ações e reações. Como lugar de idéias, a fantasia é a coleção dos indivíduos separados. Como liame de idéias, ela é o movimento que percorre o universo, engendrando dragões de fogo, cavalos alados, gigantes monstruosos.


O fundo do espírito é delírio, ou, o que vem a ser o mesmo sob outros pontos de vista,acaso, indiferença. Por si mesma, a imaginação não é uma natureza, mas uma fantasia. A constância e a uniformidade não estão nas idéias que tenho.


Tampouco estão elas na maneira pela qual as idéias são ligadas pela imaginação: essa ligação efetua-se ao acaso. A generalidade da idéia não é um caráter da idéia, não pertence à imaginação: não é a natureza de uma espécie de idéias, mas um papel que toda idéia pode desempenhar sob a influência de outros princípios.